A atual região do Planalto Sul Catarinense começou a ser explorada ainda no século 17 pelos jesuítas espanhóis. Eles se deslocavam para as regiões mais altas com o objetivo de observar o movimento dos portugueses no litoral, especialmente, Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis) e Santo Antônio dos Anjos da Laguna.
Dessas incursões resultaram nomes topográficos como Morro da Igreja, Campos dos Padres, Cemitério Jesuíta, entre outros que existem entre Bom Retiro, Urubici e Bom Jardim da Serra.
Em 1728 Francisco de Souza Faria abriu o Caminho dos Conventos ligando Laguna à Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais (atual Curitiba) e ao Distrito de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba na Província de São Paulo.
caminho foi retificado em 1732 por Cristóvão Pereira de Abreu, que abandonou o antigo traçado, desbravando um novo pela região de campos e planaltos, que passou a ser conhecido como Caminho das Tropas. Essa medida permitiria deslocamento mais rápido e seguro.
Assim o Ciclo do Tropeirismo se intensificou, quando passam a se estabelecer as primeiras propriedades no planalto das araucárias de Santa Catarina.
Fundação de Lages
Em 1766 o bandeirante Antônio Correia Pinto de Macedo, a mando da Coroa Portuguesa, recebe ordens de fundar uma povoação na margem direita do Rio Pelotas, pois os espanhóis tinham estabelecido a Baqueria de Los Piñales na margem esquerda, com a introdução de dezenas de milhares de bovinos trazidos dos Sete Povos das Missões, na maior migração pastoril das Américas.
O objetivo dos lusitanos era claro: conter a invasão castelhana em direção ao norte. Assim é fundada Villa de Nossa Senhora dos Prazeres do Certão das Lajens (atual Lages).
A partir deste período começa definitivamente a ocupação do Continente das Lajens, por bandeirantes e tropeiros paulistas. E também por açorianos que subiram a Serra Geral para explorar os rebanhos de gado xucros que se encontravam na imensidão de pastagens inabitadas – bovinos que tinham origem nos animais introduzidos pelos padres jesuítas na margem esquerda do Rio Pelotas.
É importante ressaltar que a povoação europeia dos campos de cima da serra de SC e RS foi realizada por paulistas e açorianos e não por rio-grandense do Sul, mais especificamente fronteiriços ou da pampa, como muitos imaginam.
A adoção adaptada de alguns costumes gaúchos se fez pelo modo de vida ligado à pecuária e também pela proximidade, “geografia à parte, entre irmãos de arte, não há contrabando”. Mas os costumes e a cultura do gaúcho serrano são diferentes das demais regiões do Rio Grande do Sul.
Diversas etnias
Assim o serrano é uma mescla de portugueses do continente e açorianos, africanos e povos originários, mais especificamente Kaingang e Xokleng.
Evidente que ocorreu intensa miscigenação dando origem a grande parte da população, todavia muitas famílias têm origem apenas lusitana ou miscigenando séculos depois com outras etnias europeias, mais precisamente alemã e italiana.
Registra-se que por mais de dois séculos as principais atividades do serrano foram a pecuária e o tropeirismo. Nos primórdios da ocupação do território, ele sempre estava na lida com o gado, tropeando para o norte do Brasil ou em direção ao mar, fazendo escambo com queijo, charque, pinhão por farinha, café, sal, açúcar ou outros produtos de que necessitava.
Essa atividade foi muito bem descrita pelo escritor Flávio José Cardoso, natural de Lauro Muller: “Penso nos tempos em que (...) uma tropilha de 30, 40 mulas parava num descampado... Vinham de outro país... vagamente imaginado: cerros, chapadões, canhadas, coxilhões, pinheiros, gado, maçãs e pêros d´água, cavalos e homens com revólver e faca por baixo da guaica (...). Das bruacas de couro cru saltavam queijos memoráveis, mantas de charque magníficas. Ah queijos e charques que desciam da serra no lombo daquelas mulas heroicas”!
Serrano, biriva, ensimesmado…
O isolamento das demais regiões de Santa Catarina, as longas tropeadas que duravam meses, o clima frio durante metade do ano, a participação em diversas revoluções e por sempre estar alerta quanto à pretensão dos espanhóis, forjaram um tipo social próprio no ambiente dos Campos de Cima da Serra de SC e RS, o serrano, também chamado de biriva.
Ensimesmado, de poucas palavras, vivendo da pecuária, agricultura de subsistência e extrativismo, principalmente o pinhão. Ou seja, daquilo que era essencial para a sobrevivência em condição desafiadora.
Esse modo de vida, extremamente ligado ao ambiente, sofreu influência decisiva do tropeirismo, pois a necessidade assim exigia.
Por mais de dois séculos houve intercâmbio de produtos e laços culturais com os territórios do Prata, regiões ao norte e litorâneas. De tudo isso nasceu uma cultura própria, única no Brasil.
O povo serrano, especialmente o habitante do meio rural, é por natureza simples. Para ele o campo é uma extensão de sua vida, algo indissolúvel.
E provavelmente não há maior sentimento de dor, quando, por motivos alheios a sua vontade, tem que mudar para o meio urbano. O corpo físico vai para “o povo”, mas a alma continua a vagar na antiga querência. A adaptação é muito difícil, muitas vezes não se consolida e gera um sentimento de perda por toda a vida.
É a própria erosão humana dos “desgarrados” que se consolida, de pessoas que têm raízes seculares no campo. Sentimento muito semelhante ao banzo, um estado de depressão psicológica profunda que levava muitos escravos à morte devido à saudade de suas terras natais.
A hospitalidade como característica
Mas se tem algo que chama a atenção nos habitantes do meio rural da Serra Catarinense é a hospitalidade. Mesmo quando alguém estranho brada “oh de casa” numa propriedade, após minutos de conversa e vencida a natural desconfiança, vem o convite para entrar e se abancar, tomar um mate, um café.
Essa hospitalidade é provável que tenha origem nos primórdios da ocupação da vasta região, pois somente de maneira solidária era possível sobreviver em rincões isolados.
Como também tem relação direta com o tropeirismo, atividade típica do serrano, pois praticamente todos os homens até o século 19 e também nas décadas iniciais do seguinte precisavam tropear, seja por ofício levando tropas de bois e muares para São Paulo ou em direção ao litoral, onde iam buscar produtos de primeira necessidade em troca de outros que produziam na serra.
Os tropeiros necessitavam do apoio de outras pessoas que encontravam em sua trajetória, bem como de locais de pouso, potreiros para descansar os animais e repor os mantimentos.
A família que permanecia na propriedade, quando a mulher assumia todos os encargos, igualmente necessitava de ajuda mútua dos vizinhos.
Boa parte dos serranos, principalmente aqueles que vivem em localidades mais isoladas, ainda não despertaram para a agropecuária mais tecnificada e voltada para o mercado e têm na atividade extensiva a principal fonte de renda.
Em contraponto, muitos descendentes das famílias que vieram, no amanhecer da formação do Sul, para o “Continente das Lajens” formar pátria e querência, estão perfeitamente adaptados às novas tecnologias, seja na agricultura, seja na pecuária.
São bons produtores de culturas complexas como a maçã ou criam bovídeos de forma intensiva adotando técnicas modernas.
O povo serrano tem outras características que precisam ser realçadas. A preservação das suas raízes culturais, a harmonia com o ambiente que vivem e a transmissão do saber-fazer entre as gerações.
Esse é um reconhecimento que veio bastante tarde, mas que na atualidade representa grandes conquistas. São exemplos o turismo rural, que cresce rapidamente em toda a Serra Catarinense, de forma muito particular nos municípios de maior altitude. Outro indicativo é a valorização dos produtos regionais.
A tal ponto que quatro das sete indicações geográficas (IG) de Santa Catarina já concedidas têm como principal território demarcado os campos de altitude entremeados com mata de araucária do Planalto Sul. Três são denominações de origem (DO), quando o produto está vinculado ao ambiente.
A IG Campos de Cima da Serra para queijo artesanal serrano é a única DO para queijos nacionais. Outros produtos estão com o processo de IG em elaboração ou têm potencial para obtenção desse signo distintivo coletivo.
Qualidade de vida
É importante salientar que o serrano está transformando os fatores que aparentemente eram desvantagens em ativos de grande potencial. O ambiente com invernos rigorosos, os produtos tradicionais, a gastronomia, o patrimônio histórico e a própria cultura são exemplos expressivos.
Esse conjunto de atributos, aliado à receptividade dos serranos, contribui de maneira decisiva para a migração de pessoas de outras regiões para os altiplanos catarinenses, seja para lazer em alguma época do ano, seja para residência definitiva. É um movimento que está apenas no início e que, aliás, deverá se intensificar rapidamente nos próximos anos.
A simplicidade do serrano, aliada a suas virtudes e aos ativos territoriais fortemente ligados ao meio rural, formam uma sociedade única, capaz de promover ou atrair recursos para um modelo de desenvolvimento singular, assim como foi o Ciclo do Tropeirismo.
É como se estivessem surgindo novos tropeiros, repovoando locais mais isolados e gerando novas perspectivas para uma região com a economia deprimida, mas com possibilidades de se tornar uma referência em qualidade de vida fortemente ligada aos recursos naturais.
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